Apresentando... Shrek!
Para fazer uma análise a respeito das
representações de beleza presente no filme Shrek, cabe antes fazer um pequeno
resumo da história para situar melhor quem lê. O filme retrata a
trajetória de um Ogro, Shrek, que tem seu pântano tomado por personagens de
contos de fadas. Determinado a salvar seu lar, Shrek faz um acordo com Lorde
Farquaad e parte, na companhia de um burro falante, para salvar a princesa
Fiona, a futura noiva do lorde, que está trancafiada em um castelo, guardada
por um dragão. Na verdade, o lorde tem interesse em casar pois quer torna-se
rei e para isso precisa de uma princesa. Porém, esta guarda um segredo, que
quando revelado causa espanto a todos.
Que monstruosidade é essa?
A filme começa com Shrek lendo uma história
de contos de fadas. Ao fundo, toca uma canção romântica durante a leitura. A
história é sobre uma linda princesa adormecida que é trancafiada em uma torre
guardada por um dragão, esperando ser salva pelo verdadeiro amor. Nesse
momento, Shrek rasga a página do livro, exclamando: “Como se isso fosse
acontecer!”. Ouve-se então um barulho de descarga e Shrek esmurra a porta do
banheiro. Começa a tocar uma outra música mais animada (Smash Mouth). Durante
essa música, o ogro aparece cuspindo, peidando num lago e arrotando. O espelho
quebra diante sua feiúra. Só nesse início, já é possível pensar que há uma
certa intenção de chocar quem assiste ao filme, pois são aspectos que não são
veiculados em novelas, seriados e outros filmes, pois fazem parte da intimidade
das pessoas. Em outro momento, Shrek retira cera do ouvido para fazer vela.
O ogro é perseguido por moradores por ser
diferente, uma “monstruosidade”. Em outras partes do filme, é possível
identificar essa questão, principalmente vindo do próprio Shrek que se isola de
todos no pântano. Quando o burro livra-se de guardas do Lorde Farquaad por
causa de Shrek, resolve acompanhá-lo por não ter amigos. Porém, Shrek faz de
tudo para mantê-lo afastado: “Olha para mim. O que eu sou? Sou um ogro! Não te
incomoda isso?”. Mas o burro não lhe dá bola. Isso porque ele também sente-se
rejeitado pois fica sozinho e não tem ninguém, chegando a achar que é
diferente. Em um momento chega a reclamar para Shrek que “é muito chato ser
considerado anormal”. Enquanto o dois vão atrás de Fiona, Shrek compara os
ogros a uma cebola que tem camadas e diz que “há mais do que se imagina nos
ogros”. O Burro pergunta-lhe se ele não pode ser como um bolo ou pavê que as
pessoas gostam, mas Shrek diz não se importar com o que todo mundo gosta. Na
verdade, Shrek acabou construindo uma barreira para não ter que lidar com essa
questão.
O pântano de Shrek é invadido por seres dos
contos de fadas. O lobo mau deita-se na sua cama e os sete anões colocam a
Branca de Neve, que está numa redoma de vidro, na sala. Quando Shrek aparece
para expulsá-lo, todos se assustam diante sua feiúra porém quando diz que
falará com o Lorde para devolver suas terras, os seres dos contos de fadas o
aclamam como se fosse rei. Recebe de passarinhos uma coroa de flores e um manto
vermelho, relembrando a Bela Adormecida. Essa situação também se repete quando
Shrek, já no castelo do Lorde, precisa lutar com guerreiros que disputariam
entre si a missão de salvar a princesa Fiona. No início, o público olha para
ele horrorizado, mas depois Shrek acaba ganhando a simpatia de todos sendo
aplaudido por ter ganhado a luta.
Em outro diálogo, Shrek diz ao burro que “às
vezes as coisas são mais do que parece”. O burro lhe acusa de estar
afastando-se das pessoas:
B: - “ O que você está escondendo? Quem
está tentando manter longe?”
S: - “Todo mundo, ok?”
B: - “Qual é o problema? O que você tem
contra todo mundo?”
S: - “Não sou eu que tenho problemas, ok? É
o mundo que parece ter um problema comigo. As pessoas olham para mim: ‘Ah,
socorro! Um ogro horrível!’Elas me julgam antes de me conhecer. Por isso que
estou melhor sozinho”.
A diferença acaba por ser ignorada,
eliminada ou excluída, pois escapa ao padrão definido pela sociedade.
Existe um reino mais perfeito do que o meu?
Na verdade, o que o Lorde quer é tornar-se
rei, mas para isso precisa de uma princesa. É o que diz o espelho da Branca de
Neve, capturado pelos seus guardas, quando Farquaad pergunta se existe um reino
mais perfeito que o dele. O espelho passa então a apresentar as “candidatas” à
noiva (como se estivesse apresentando um concurso de beleza): Cinderela, Branca
de Neve e Fiona. O interessante na apresentação de Cinderela é a indicação de
seu “hobby”: “cozinhar e limpar para as duas irmãs más”, como se ela fizesse
isso porque quer (e por serem tarefas femininas) e não porque é mandada. Outra
curiosidade é que as candidatas servem para todos os gostos: uma morena, uma
ruiva e outra loira (que não poderia faltar). Após a escolha do Lorde, o
espelho começa a dizer que “existe uma pequena coisa que acontece a noite com
Fiona que ele precisa saber”, mas o Lorde não lhe dá atenção.
O bem e o mal
O castelo onde Fiona está aprisionada é
escuro e sombrio, como todos os outros castelos do mal são retratados nos
filmes infantis (como fica o castelo da Bela Adormecida quando Malévola surge
como um dragão). O castelo fica numa montanha coberto por nuvens pretas ao
redor de um rio de lavas. Essa é uma forte característica dos filmes infantis:
há uma clara distinção entre o bem e o mal, retratada através das cores e sons,
pois as cores claras são utilizadas para mostrarem os heróis e as escuras
representam os vilões.
O dragão surge no escuro para dar medo ao
telespectador. Porém, quando encurrala o Burro e este começa a elogiar seus
dentes, o Dragão aparece na luz: é rosa, com cílios grandes e pintados e batom
- um dragão fêmea. O cenário muda de cor, torna-se mais claro, menos
assustador. O dragão fêmea assume uma fisionomia simpática. Acaba
apaixonando-se pelo burro.
Chatice que cospe fogo?
Um aspecto relevante do filme que pode ser
analisado sob a perspectiva dos Estudos Feministas surge no seguinte diálogo, quando
os personagens estão entrando no castelo para salvar a princesa Fiona:
- Burro: “Onde está essa chatice que cospe
fogo?”
- Shrek: “Lá dentro, esperando que a gente
a salve!”
- Burro: (RISOS) “Eu estava falando do
dragão, Shrek!”.
Através desse diálogo podemos ver
claramente como se caracterizam e são representadas as relações de gênero. Além
de “chata”, podemos pensar que a mulher é considerada tagarela ou estúpida e
bruta ao falar. Claudia Rael, ao estudar as protagonistas da Disney, cita o
caso da princesa Ariel, que para tornar-se humana aceita dar sua voz à Bruxa
Úrsula. Esta diz que os homens gostam de “garota caladinha”, “retraída” e
“quietinha”. Rael analisa que “o ideal feminino vai se constituir a partir da
lógica binária do masculino/feminino, onde o primeiro termo é valorizado e se
opões ao segundo termo visto como negativo” (RAEL, 2002:48). Neste caso, as
atitudes femininas são definidas a partir do homem que acaba tendo o poder de
determinar as atitudes das mulheres podendo falar sobre elas.
Resgatando a princesa
Um outro momento do filme onde também
podemos analisar as questões de gênero é durante o salvamento de Fiona. Graças
ao dragão, Shrek desmorona na torre onde está a princesa. Ao vê-lo chegar,
deita-se na cama, fingindo estar adormecida. Tem até um buquê de flores a sua
disposição. Quando Shrek aproxima-se, Fiona faz um bico com a boca para receber
um beijo, mas ele sacode-a, perguntando se é a princesa. Esta responde que sim
e que estava “aguardando um cavalheiro corajoso que viesse me salvar”. Durante
toda essa cena, acabamos por relembrar os contos de fadas, bem como a posição
da princesa frente ao seu príncipe encantado que veio salvá-la. A própria Fiona
mostra que esse tipo de história não muda e o enredo é sempre o mesmo. Sua expectativa
também é baseada no romantismo típico às princesas:
- “Espera cavaleiro! Encontramo-nos
finalmente. Não deverá este ser um momento maravilhoso e romântico?”.
- “Rezo para que aceites esse favor como
prova de minha gratidão!” (Fiona entrega a Shrek um lenço, mas este enxuga o
suor e lhe devolve).
- “Você não matou o dragão? Mas não está
certo. Você deveria ter entrado com uma espada numa mão e na outra um
estandarte. Foi o que os outros fizeram”.
Após saírem do castelo Fiona diz que eles
devem se beijar. Shrek reclama que isso não estava no contrato, mas a princesa
diz que o beijo é o destino, que seria o primeiro beijo do amor verdadeiro.
Shrek revela então que o príncipe é o Lorde Farquaad que pediu para salvá-la.
Fiona fica furiosa: “Eu tenho que ser salva por um verdadeiro amor e não por um
ogro e o seu burro.”
Essas falas de Fiona revelam o quando o
romantismo está associado ao feminino. É característica dos filmes infantis a
princesa ser retratada como sendo sentimental, ficando a espera do príncipe
encantado.
Durante a volta ao castelo do Lorde, Fiona
canta com um passarinho, como no filme A Bela Adormecida. Podemos perceber o
quanto a música é um recurso bastante utilizado nos filmes por sinalizarem uma
certa importância emocional das cenas, descrevendo sentimentos dos personagens.
Nessa cena, a voz suave da princesa reforça um forte característica da
representação feminina.
Os filmes infantis também acabam por
reproduzir um comportamento desejável às mulheres. Em uma cena, Shrek arrota e
o burro o repreende dizendo que não era maneira de portar-se na frente de uma
princesa. Esta então arrota:
- Burro: “Ela é tão nojenta quanto você?”.
- Shrek: “Ela é diferente!”
- Fiona: “Talvez não devêssemos julgar
antes de conhecer.”
O diálogo retrata que atitudes são
consideradas adequadas para uma mulher, pois ao arrotar Fiona não é considerada
uma princesa normal (afinal, elas também tem suas necessidades fisiológicas),
mas sim diferente como se essa atitude não fizesse parte do universo feminino.
Uma outra atitude que causa estranhamento aos personagens masculinos é quando a
princesa luta com Robin Hood e seus amigos (no final do filme, dá a entender
que esses personagens são homossexuais pois dançam YMCA do grupo Village
People). Lutar é associado ao homem pois exige força e destreza,
características associada ao homem. Esse é o único momento do filme em que o
personagem feminino salva o personagem masculino pois o mais comum de acontecer
é o contrário.
Princesa = beleza
Antes de a princesa ser entregue ao Lorde,
o Burro faz uma descoberta: Fiona foi enfeitiçada por uma bruxa e transforma-se
num ogro à noite. O feitiço só seria quebrado com um beijo do verdadeiro amor e
assim assumiria sua verdadeira forma. Por isso precisa casar-se com o lorde
antes do por do sol.
Nesse momento da história, o diálogo entre
os personagens revela muitos discursos em torno do que é ser princesa e de como
essa posição social está associada à beleza. Seus padrões “regulam os lugares
onde as pessoas se permitem amar serem amadas: a partir deste lugar conferido
pela beleza, a figura da princesa apresenta-se como apta para protagonizar o
amor” (GOMES, 2000: 21). Primeiramente, o Burro tenta convencer Shrek a
declarar-se para Fiona, mas Shrek diz que não adiantaria nada pois ela é uma
princesa e ele um ogro. Após, Fiona lamenta-se para o Burro:
- “Eu sou uma princesa e não é assim que
uma princesa deve parecer.”
- “Quem poderia amar alguém mais nojento e
feio. Princesa e feiúra não combinam”.
As princesas, como a maioria das protagonistas
não só dos filmes infantis, mas as que aparecem na mídia em geral, são sempre
representada como jovens bonitas, esbeltas, com voz, traços e formas mais
suaves, “que utilizam roupas e adereços que marcam sua condição feminina e lhe
proporcionam uma aparência sedutora”( RAEL, 2002:65). Fiona também é uma
princesa com corpo esguio, voz suave, olhos verdes e cabelos ruivos. Procurei
selecionar figuras das principais princesas e protagonistas da Disney para
mostrar as semelhanças: moças brancas, com narizes pequenos, que usam longos
vestidos, muitas vezes sendo chamadas de belas. Paola Gomes, em sua tese de
mestrado, conclui que existem traços típicos entre as princesas e outras
mocinhas e heroínas e que estas não são “características aleatórias; o nariz
pequeno das princesas, por exemplo, está carregado de alusões à pueridade que,
por sua vez remete à inocência, qualidade necessária para que o amor romântico
se realize da forma mais pura” (GOMES: 2000: 181).
O corpo perfeito também é associado à
beleza e tem sido destaque na mídia. Nos filmes infantis não encontramos
protagonistas mais “cheinhas”. Essa representação geralmente é feita com as
vilãs ou criadas e empregadas das histórias. Há também uma preocupação em
relação ao uso de roupas e adereços apropriados ao personagem, evidenciando
belas formas e transmitindo sensualidade. “Tudo isso são construções sociais e
culturais que marcam os corpos dos sujeitos e estabelecem a conformação dos
mesmos às regras sociais, estéticas e morais dos grupos a que pertencem” (RAEL,
2002: 68). Assim, essas marcas servem como regulação social que indicam as
identidades dos sujeitos e o seu destino na história.
Quem ama o feio, bonito lhe parece.
Durante o casamento, Shrek surge para
declarar seu amor por Fiona. Esta diz que precisa lhe falar a verdade e espera
o pôr do sol para mostrar-se como ogro. Shrek diz que a ama e os dois se
beijam. Começa a transformação: a cena remete-nos ao filme A Bela e a Fera,
quando esta se transforma em príncipe encantado. Porém Fiona continua como
ogro. Não entende:
- Fiona: “Eu deveria estar linda.”
- Shrek: “Mas você está linda!”
Essa transformação parece surpreender, pois
há uma certa expectativa de que Fiona torne-se novamente uma princesa humana. É
como se o final feliz fosse merecedor apenas para o belo.
O filme foi considerado pela crítica como
um “anti-contos de fadas”, talvez por retratar intimidades que não costumam
aparecer na mídia e por terem como personagens principais figuras que fogem ao
padrão de beleza estabelecido pela sociedade. O mocinho é um ogro e seu
companheiro um burro falante, e a princesa ao final assume a forma de um ogro.
Porém mesmo assim a história constitui-se de um conto de fadas, por apresentar
os mesmos elementos como a donzela em perigo e o final feliz, entre outros.
Durante todo o filme, pudemos perceber
práticas discursivas a respeito da mulher e principalmente da beleza, sendo
abordado inclusive a beleza interior. Conforme Paola Gomes, a beleza tem um
padrão bem definido pela sociedade e assim, a feiúra passa a ser “ tudo aquilo
que por detalhes ou evidências, escapa ou se opõe a esse padrão. Quanto mais
rigidamente o olho estiver acostumado a apreciar o padrão, maiores serão as
dificuldades para aceitar o que está fora desse padrão” ( GOMES, 2000: 187).
São as diferenças que não são aceitas ou que são excluídas em função da
identidade padrão.
E o final da história? Eles viveram felizes
para sempre.
Palavras finais????
Os desenhos animados, como vimos, fazem
circular discursos sobre beleza, sexualidade e gênero. Por ser uma das
instâncias culturais que participam da constituição de identidades e
subjetividades, precisam ser analisadas com um olhar crítico.
Muitos saberes veiculados pela mídia são
tomados como verdades. Os filmes infantis reforçam as oposições binárias: bem
ou mal, heróis e vilão, homem e mulher; valorizando o primeiro elemento. Essas
imagens produzem modos de ser que constituem subjetividades.
Em relação a beleza, tratada nessa
pesquisa, há um discurso do belo, do corpo perfeito e das mulheres que são
produzidos para seduzir e encantar as pessoas. Pois ao consumirmos essas
imagens, estamos absorvendo a idéia da eterna juventude das princesas bem como
o desejo de um amor ideal e felicidade para sempre.
Ao veicularmos os filmes infantis nas escolas,
parece importante questionar que tipos de discursos são transmitidos. Este
artefato cultural não deve ser considerado apenas como entretenimento, mas sim
um importante local de cultura infantil que colabora na constituição de
sujeitos.